A Lei Maria da Penha (que pode ser consultada, na íntegra, aqui) prevê diversos mecanismos para a proteção da mulher contra a violência doméstica.
Em muitos casos, a vítima de violência doméstica é compelida a deixar sua residência, seu trabalho e até a cidade onde vive, para abrigar-se contra a perseguição de seu ofensor.
A norma prevê, a fim de preservar essa possibilidade, o direito à “manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses“.
Embora seja louvável a iniciativa legislativa, não há na norma nenhuma previsão concreta a respeito do que representa, para o empregador, esse direito da trabalhadora à “manutenção do vínculo trabalhista“, quando determinado judicialmente.
Para o Direito do Trabalho, “manutenção do vínculo trabalhista” é uma expressão que não define, tecnicamente, nenhuma situação específica dentre as muitas hipóteses legais que impedem o despedimento do trabalhador pelo empregador.
O legislador, ao escolher as palavras que definiriam o direito da vítima de violência doméstica, não faz referência a “estabilidade provisória“, “suspensão do contrato de trabalho” ou “interrupção do contrato de trabalho“.
Em todos esses casos, o trabalhador mantém seu contrato, mas cada um deles tem efeitos jurídicos totalmente diferentes — a principiar pela obrigação do empregador de pagamento de salários.
Por outras palavras, a Lei Maria da Penha apenas estabelece que, no período de até seis meses e por determinação judicial, a empregada não pode ter seu contrato de trabalho rompido por iniciativa do empregador, mas não especifica, sequer, a quem incumbe o custeio desse período de afastamento.
No texto dessa semana do Informativo, dedicamos algumas linhas à tentativa de enxergar além do problema e encontrar, entre as opiniões divergentes sobre o tema, aquela que parece mais confiável.
Alertamos, desde já, que há enorme polêmica em relação aos efeitos desse afastamento — e ainda se está muito longe de resolver esse impasse, não existindo, sob nenhum ponto de vista, uma solução 100% segura para o problema.
Breve resumo sobre as origens da Lei Maria da Penha
A Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como “Lei Maria da Penha” foi editada após a aplicação de uma sanção pela Organização dos Estados Americanos (OEA), à República Federativa do Brasil, em decorrência de omissões relativas aos casos de violência doméstica contra a mulher.
O nome “Lei Maria da Penha” é uma referência à farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de duas tentativas de homicídio por ex-marido, em 1983.
Embora noticiados os fatos imediatamente, o inquérito policial somente foi concluído no ano seguinte e o autor do crime somente foi julgado em 1996.
Sentenciado a uma pena de dez anos e seis meses, recorreu em liberdade e somente foi efetivamente preso em 2002 — 19 anos após o cometimento dos crimes — cumprindo, então, dois anos da pena em regime fechado.
Durante esse período de 19 anos, a vítima formalizou denúncias e representações perante diversas autoridades brasileiras, inclusive aquelas dedicadas à proteção dos direitos da mulher, sem que nada surtisse o efeito desejado.
Somente após denunciar as omissões do Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA) é que foram realizados progressos, instaurando-se no âmbito desse órgão internacional o Caso n.º 12.051, Maria da Penha Maia Fernandes versus Brasil.
No Relatório n.º 54/01, que resume as conclusões da CIDH/OEA, consta uma análise pormenorizada de todo o histórico da violência contra Maria da Penha Maia Fernandes (em particular) e contra a mulher brasileira (em geral) — o Relatório pode ser consultado, na íntegra, no website da Comissão, aqui.
A CIDH/OEA concluiu pela existência de injustificáveis omissões do Estado brasileiro no combate à violência doméstica contra a mulher e apresentou diversas recomendações que deveriam ser observadas pelo Brasil, entre elas:
“Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil.” — destacamos
Uma vez que as recomendações não foram seguidas pelo Brasil, o Relatório foi enviado à Assembleia Geral da OEA e o país foi finalmente condenado a não somente indenizar a vítima Maria da Penha como, também, a implantar os meios legais que prevenissem a ocorrência de novos casos.
Em resumo, desde a origem, os conceitos expressos na Lei n.º 11.340/2006 ou “Lei Maria da Penha” foram construídos a partir de um contexto de omissão estatal.
A existência dessas disposições legais decorreu de obrigação imposta por um órgão internacional, que considerou inaceitável a “tolerância estatal (…) com respeito à violência doméstica contra a mulher“, determinando que algo fosse feito.
Efeitos do afastamento do trabalho: opiniões divergentes
As discussões a respeito dos efeitos da Lei Maria da Penha nos contratos de trabalho decorrem precisamente do fato de que a norma legal prevê o direito, sem especificar de que forma seria realizado.
Ainda não se chegou a um consenso sobre a forma de operacionalizar esse direito, na prática, apesar da Lei existir há quase seis anos.
Na ausência de disposição expressa da Lei, cabe aos Juízes e Tribunais interpretar o conjunto normativo para chegar a uma solução, o que ainda não ocorreu.
O que se tem observado são opiniões divergentes entre os estudiosos do Direito; há os que defendem que esse afastamento seria uma forma de licença remunerada, sem prejuízo dos salários e outros que defendem tese contrária.
Para os que se filiam àquela tese, não se poderia presumir que a lei autorizaria a “descontar” da trabalhadora os dias de afastamento, por se tratar de ausências por razões alheias à sua vontade — situação análoga, por exemplo, à condição da empregada que é acometida por uma doença.
Defende-se, nessa corrente, que a supressão dos salários durante o período de afastamento imporia prejuízos ainda maiores à trabalhadora vítima de violência doméstica, lançando-a em uma situação de penúria financeira, o que agravaria seu sofrimento psicológico ou emocional.
Aqueles que se colocam contrários a essa tese afirmam não estarem insensíveis ao drama vivido por essas trabalhadoras.
Porém, defendem que não cabe ao empregador o custeio desse afastamento, não somente porque a situação de violência doméstica é alheia à relação jurídica laboral, mas também porque a legislação, quando prevê afastamentos com recebimento de salário o faz expressamente.
No caso, a lei simplesmente garante a manutenção do emprego, mas não impõe a obrigação de que essa manutenção ocorra sem prejuízo do salário.
Assim, não havendo disposição legal expressa que obrigue o empregador ao pagamento de salário (como é o caso das ausências justificadas previstas no art. 453 da CLT), a interpretação mais adequada, de acordo com essa teoria, seria a de que o direito previsto na Lei Maria da Penha suspende temporariamente os efeitos do contrato de trabalho.
A suspensão do contrato de trabalho é a condição em que o contrato se mantém existente, mas as obrigações de empregado e empregador não geram efeitos; assim, não há prestação de trabalho, nem recebimento de salário.
Além disso, por todo o período que perdurar a causa suspensiva, o contrato de trabalho não pode ser rescindido por inciativa do empregador.
Essa impossibilidade de despedimento do trabalhador enquanto o contrato está suspenso é coerente com a previsão da Lei Maria da Penha que garante a manutenção do contrato durante o afastamento.
De outro lado, os defensores dessa tese sublinham que as disposições da Lei Maria da Penha trouxeram avanços importantíssimos, em termos de política criminal, no sentido de obrigar o Estado (é importante sublinhar) a promover em diversas frentes a proteção aos direitos da mulher.
Diante desse quadro, cabe ao Estado prover os meios necessários para a implantação dessas boas práticas, o que poderia ser feito pela instituição de um auxílio de natureza securitária para as trabalhadoras nessas condições.
O argumento de que a situação da trabalhadora vítima de violência doméstica se assemelharia à condição daquela acometida por uma doença, em lugar de enfraquecer, reforça essa visão de que o seu sustento deveria ser provido por benefício de natureza securitária, cumprindo ao Estado e não ao empregador a definição da origem dos recursos para o custeio de tal benefício.
Essa interpretação afigura-se mais coerente com o contexto em que a Lei Maria da Penha foi criada, qual seja, a imposição de uma sanção ao Brasil pela omissão estatal em relação à violência doméstica dirigida contra a mulher.
Embora ainda não haja decisões judiciais específicas sobre o tema, tem ganhado força entre os estudiosos a tese de que é necessária a criação de um benefício previdenciário para o custeio desse período de afastamento.
A Advogada gaúcha Maria Berenice Dias, autora de diversos livros e artigos sobre temas vinculados a relações familiares e violência de gênero, defende em obra específica (A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007):
“a solução mais adequada é (…) a suspensão do contrato de trabalho, no qual a mulher teria mantido seu vínculo empregatício, porém não recebendo salário do empregador, mas sim do órgão previdenciário, a exemplo do que ocorre na licença-gestante e na ausência do empregado por acidente de trabalho.”
Sérgio Pinto Martins, Desembargador do Trabalho e autor de diversos livros em relacionados ao direito do trabalho, também defende em um artigo da revista Carta Forense (mais informações, aqui) que não cabe ao empregador o pagamento de salários do período de afastamento.
Conquanto essa opinião possa refletir uma nova tendência para a solução do impasse envolvendo o afastamento da trabalhadora vítima de violência doméstica, essa tese depende de legislação especifica que institua um benefício dessa natureza — e ainda não há notícia de nenhum Projeto de Lei, na Câmara ou no Senado, prevendo esse benefício.
Como se vê, embora pareça mais coerente e defensável a tese de que não é obrigação do empregador remunerar o período de afastamento da trabalhadora vítima de violência doméstica, não há legislação que permita a proteção do sustento da mulher e de sua família enquanto perdurar o afastamento.
Fato é que a vítima de violência doméstica não pode, evidentemente, permanecer no desamparo. Quem será responsabilizado pela sua subsistência, embora afigure-se razoável que seja o Estado, ainda é uma indagação em aberto.